Petrushka: a obra-prima de Stravinsky e Benois

Olá! Gosto muito de balés, mas no caso de Petrushka (ou Petróuchka, difícil decidir como escrever) acabei me interessando porque a Nodame (do anime/dorama Nodame Cantabile) tocou um arranjo pra piano em um concurso.

Como não sabia que tema escolher pro trabalho de História da Música IV (pouca coisa me interessa em música contemporânea…), decidi fazer sobre o balé, assim como no semestre passado escrevi sobre os balés de Tchaikovsky.

Segue o texto.

2013-09-07 07.06.19

Introdução

Igor Stravinsky impulsionou algumas das tendências musicais mais importantes da primeira metade do século XX. Nasceu na Rússia em 1882 mas viveu em Paris, Suiça, Califórnia e Nova Iorque, onde morreu em 1971.

As principais composições de sua primeira fase foram três balés encomendados por Sergei Diaghilev, fundador e diretor de uma companhia de Ballet Russo em Paris. Os balés foram, por ordem cronológica, O Pássaro de Fogo, Petrushka e A Sagração da Primavera. Este trabalho se propõe a falar sobre o segundo balé.

O processo de composição

Petrushka, também escrito Pétrouchka pelos franceses, é um balé burlesco de apenas um ato, Petrushka é o diminutivo russo de Peter. dividido em quatro cenas. Com o sucesso do Pássaro de Fogo, a posição de Stravinsky na empresa Diaghilev estava garantida e começou a se falar de novas obras para balé. Seguindo o sucesso do balé anterior, Igor Stravinsky passou por um processo de auto-descoberta. Alguns afirmam que foi com Petrushka que Stravinsky se tornou Stravisnky.

O libretto foi escrito por Stravinsky e Alexandre Benois. Além disso, Benois também foi o responsável pelo cenário e figurino, além de aconselhar Fokine sobre a coreografia e trocar cartas com Stravinsky sobre a construção da peça, especialmente sobre a última cena. Stravisnky escreveu em uma de suas cartas: “Escreva-me. É sempre mais fácil de trabalhar quando há cartas suas. Eu juro!”

Benois havia anunciado que nunca mais trabalharia em uma produção da companhia Diaghilev, entretanto mudou de ideia por dois motivos: o primeiro porque queria trabalhar com o compositor do Pássaro de Fogo. O segundo, por causa de suas lembranças de infância envolvendo os shows de bonecos. No que se refere aos cenários, ele recriou a feira a partir das memórias de sua infância em São Petesburgo. Ele deu uma boa descrição de como eram tais shows:

“Eu fui muito cedo encantado pelos shows de Petrushka, embora não consiga me lembrar de quando vi o primeiro, pois tive a boa sorte de quando era criança pequena ter visto tantos e em vários lugares diferentes… A tela colorida sobe, o músico toca seu instrumento, criando a atmosfera certa para estimular sua curiosidade – e de repente aparece um pequeno e deformado manequim em cima da tela. Ele tem um nariz enorme, um sorriso largo que nunca deixa seus lábios e em sua cabeça um chapéu vermelho com o formato de um cometa. Ele é rápido em seus movimentos, com pequenas mãos que usa para expressar seus sentimentos. Petrushka imediatamente ataca o músico com perguntas bobas que ele responde melancolicamente… O boneco continua a gesticular, começando uma conversa rude com o músico; ele o insulta e ri… Às vezes o público ao redor da tela ria com as piadas sujas e nessas ocasiões meus irmãos olhavam um para o outro e Mamãe parecia ansiosa, esperando que não entendêssemos essas indecências.”

Como pode-se perceber, os bonecos tragicômicos Harlequins eram muito populares na cultura russa, presentes em diversos poemas e outras obras; Petrushka não foi o primeiro balé sobre eles. Um exemplo dentro da própria companhia Diaghilev foi o frágil balé de Fokine para o Carnaval de Schumann, em 1902.

Quanto à sua participação na construção do balé, Benois afirma:

“Na minha admiração sem limites pelo gênio musical de Stravinsky, eu tive vontade de minimizar minha própria parte na criação de Petrushka. O assunto do balé foi totalmente ideia de Stravinsky e eu apenas ajudei-o a organizar em forma dramática concreta. Mas o libretto, o elenco de personagens, assim como um número de outros detalhes, foram quase inteiramente meus. Minha colaboração com a produção, de qualquer forma, parece trivial em comparação com a música de Stravinsky.”

Quando Stravinsky e ele conversaram sobre a autoria do balé, Benois disse que Stravinsky deveria colocar seu nome como autor do libretto, mas o compositor insistiu em, pelo menos, colocar o nome de Benois junto. Benois, por sua vez, insistiu que o nome de Stravinsky viesse primeiro, apesar da ordem alfabética. Por fim, o compositor dedicou o libretto ao parceiro.

Petrushka é considerado a obra-prima da companhia de balé Diaghilev por causa do seu exemplo de perfeita colaboração entre os envolvidos. A história conta com o recurso de ter um plot dentro de um plot. Por isso Stravinsky compôs “música dentro de música”. Primeiro danças nacionais e tradicionais para as pessoas na feira. Depois, música para os personagens principais descrevendo não apenas suas características externas mas também seus sentimentos internos. Assim, a música tem uma interpretação de personalidade, atmosfera e narrativa através de uma variedade de ritmo e de cor. Sua música revela quão atormentado Petrushka é, enquanto seus relacionamentos e conflitos com o mundo exterior são retratados através da coreografia.

Fokine, coreografista, usou de simbolismo na construção dos personagens. Petrushka, o oprimido. Bailarina, representando a futilidade feminina. Mouro, o convencido e egoísta. A combinação de todos esses elementos torna a obra uma perfeita fusão de música, design e dança para transmitir a mensagem.

A oposição do ponto de vista das pessoas e dos bonecos na forma como o balé foi construido pode ser vista como a oposição do mundo real e do mundo fantástico. Apenas os bonecos têm sentimentos e personalidades. As pessoas na peça agem e se movem de forma mecânica, como brinquedos, enquanto os bonecos agem espontaneamente, impulsivamente – ou deveríamos dizer humanamente?

Enredo

Cena 1: A feira. Ciganas, dançarinas, artistas de todos os tipos e clientes estão na praça. Um artista vestido como mágico chama a atenção dos transeuntes e mostra para o público três bonecos: uma bela boneca Bailarina, o insignificante e triste Petrushka e o incrível mas estúpido Mouro. Com um toque de sua varinha, ele faz os três ganharem vida. Eles dançam e correm atrás um do outro pela praça.

Cena 2: A cela de Petrushka dentro da tenda. O boneco amaldiçoa seu destino, seu amor sem esperança pela Bailarina, sua obediência ao mágico, seu sofrimento por estar aprisionado em um corpo de boneco. A Bailarina o visita, mas sua inquietação a amedronta e ela vai embora.

Cena 3: A cela do Mouro. Ele brinca com um coco, pensando apenas em suas necessidades materiais. A Balarina o visita e usa seu charme para ganhar seu interesse. Finalmente ela consegue, mas Petrushka entra na cela sem ser chamado e o Mouro o ataca, colocando-o para for a à força.

Cena 4: A feira está em seu ápice. De repente a multidão percebe o tumulto por trás das cortinas da tenda do mágico. Petrushka sai, perseguido pelo Mouro e pela Bailarina. Cortado pela cimitarra do Mouro, Petrushka morre no meio do show. A multidão, horrorizada pela tragédia, chama o mágico, que pega o corpo de Petrushka e revela ser um boneco de pano e serragem. A multidão, acalmada, vai embora e o mágico volta para casa, arrastando o boneco junto consigo. Subitamente, ouve um lamento. Acima da tenda aparece o fantasma de Petrushka, desafiando-o pela primeira e última vez. Apavorado, o mágico foge enquanto a figura de Petrushka cai inanimada uma vez mais no topo da tenda.

A música

A música da primeira cena de Petrushka foi composta usando como inspiração vários temas folclóricos, para dar o clima da feira. Stravinsky se inspirou muito no trabalho de Rimsky-Korsakov, 100 Russian Folk Songs. Outra fonte de inspiração foi Tchaikovsky. Um exemplo é a combinação de celesta e harpa na Dança da Fada do Torrão de Açúcar, do balé O Quebra Nozes, cuja ideia Stravinsky adaptou para representar o efeito da multidão na primeira cena.

Enquanto a música da primeira cena é mais diatônica, a da segunda é mais cromática, com o uso do Acorde Petrushka, que será explicado mais adiante. Esse é um fato interessante da composição de Stravisnky, que usa música diatônica para representar os humanos e cromatismo para representar os bonecos.

A terceira cena apresenta um material diferente, inspirado nas valsas de Joseph Lanner. Há a sensação de mudança porque antes a música tinha fortes características da música folclórica russa.

Na terceira e última cena há um retorno a esse material russo previamente utilizado, com melodias russas ricamente acompanhadas pela orquestra.

Uma ironia sobre Petrushka é que, mesmo com a grande influência de elementos naturais, como música folclórica e das ruas, a impressão que o balé causa é tudo menos naturalista. Não há a sensação de que estamos vendo uma evocação do mundo real, mas sim de uma realidade constrúida.

Acorde Petrushka e a bitonalidade

Bitonalidade, como o próprio nome já indica, é o uso simultâneo de dois tons. O tipo mais efetivo de bitonalidade é a combinação de duas tríades maiores polarizadas cujas tônicas ficam nos pontos diametralmente opostos no ciclo das escalas, e formam um intervalo de trítono. A soma dos valores absolutos dos sustenidos e bemois de tais tríades é sempre seis. Exemplo: Do Maior e Fa♯ Maior, com nenhum sustenido e seis sustenidos, respectivamente. Ou La♭ Maior e Re Maior com quatro bemois e dois sustenidos.

O tipo mais usado de bitonalidade é com as tríades maiores de Do e Fa♯, que formam a fundação harmônica de Petrushka, e por isso é comumente chamado de Acorde de Petrushka. Também é chamado de Acorde Parisiense porque foi posteriormente muito usado por compositores franceses.

Esse acorde tem origem claramente pianística, com o contraste das teclas brancas de Do Maior e das teclas pretas de Fa♯ Maior. De fato, Stravinsky originalmente havia planejado usar esse material bitonal em um concerto para piano e orquestra e isso conta para a importante parte de piano em Petrushka.

Recepção

Foi encenado pela primeira vez em Paris, no dia 13 de junho de 1911, quatro dias antes do aniversário de Stravinsky.

A recepção russa de Petrushka aconteceu devagar. Como não houve performances até depois da revolução que estava acontecendo na época, o público só ouviu falar do balé através de rumores. Os críticos, entretanto, elogiaram o balé, especialmente a música de Stravinsky.

Por outro lado, alguns afirmaram que o sucesso foi essencialmente da música e não acompanhado pela dança, que seria supérflua pela falta de “dançabilidade” das composições, como afirmado pelo próprio coreógrafo, Fokine.

Outra fonte de controvérsia é que alguns críticos, apesar de gostarem da obra, acreditavam que, como foi escrita na França e primeiro apresentada lá, tratava-se de uma peça “francesa” com tema russo.

Referências

BRINSON, Peter; CRISP, Clement (1970). The Pan Book of Ballet and Dance. Londres: Pan Books, 1980. 256 p.

CROSS, Jonathan. (ed) The Cambridge Companion to Stravinsky. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. 327 p.

GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. 5. ed. Lisboa: Gradiva, 2007. 759 p.

MORGAN, Robert P. Twentieth Century Music. New York: Norton & Company, 1991. 554 p.

SLONIMSKY, Nicolas. Music since 1900. 5. ed. New York: Schirmer Books, 1994. 1260 p.

TARUSKIN, Richard. Stravinsky and the russian traditions: A biography of the works through Mavra. v. 1. California: California University Press, 1996. 966 p.

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Fazendo cachecois e escrevendo sobre Petrushka. Só trabalho.


3 Responses to Petrushka: a obra-prima de Stravinsky e Benois

  1. Achei o texto muito interessante, Patrícia. Tem umas partes sobre música que pra mim ainda são crípticas (tipo, "combinação de duas tríades maiores polarizadas cujas tônicas ficam nos pontos diametralmente opostos no ciclo das escalas, e formam um intervalo de trítono"), mas que me soam extremamente interessantes e só me dão mais ânimo para continuar estudando música. Imagina que bom vai ser quando eu entender isso aí! Você poderia escrever um post explicando a diferença entre música diatônica e cromática?

    Tenho um par de coisas do Stravinsky aqui e acho um tipo de música bem diferente. Ouço de vez em quando mas o clique que faz entender o motivo do cara ser tão ovacionado ainda não bateu. Ainda estou educando o meu ouvido.

    Fiquei curioso por você falar que pouca coisa te interessa na música contemporânea. Você não curte rock'n'roll, mpb, blues, não? Acho que você vai curtir Elton John: http://grooveshark.com/s/Take+Me+To+The+Pilot/40e

    Um detalhe: na seção A Música, no quarto parágrafo, você cita a terceira cena. Deveria ser a quarta, não?

    Obrigado pelo texto. Manda mais coisa assim!

  2. Oi, Mário! Infelizmente por ser um trabalho acadêmico acaba ficando com essas partes ~misteriosas~ muito técnicas que eu sempre evito em posts =p Posso fazer um post a respeito, sim! Agora tô de férias, posso tudo! \o/

    Quando falo que pouca coisa da música contemporânea me interessa, estou me referindo especificamente ao erudito. Gosto mais dos primeiros compositores que ainda estão mais ligados ao romantismo tardio mesmo, como Debussy.

    E… Tem razão! Comi bola ali na numeração das cenas. Valeu pela correção! :)