Francisco Manuel da Silva e a inauguração do primeiro Conservatório

Olá! No semestre anterior, para a disciplina de História da Música Brasileira I, meu grupo fez um trabalho sobre a história da educação musical no país, desde o uso da música na catequização dos índios, os professores de música estrangeiros, até a criação do primeiro Conservatório. A professora Lenita gentilmente me emprestou o livro “Do Conservatório à escola de música”, ensaio de Baptista Siqueira. Esse livro traz detalhadamente como se deu a criação do Conservatório, que hoje é a Escola de Música da UFRJ. Em um dos capítulos há a transcrição do discurso de Francisco Manuel da Silva, presidente da Sociedade de Música e primeiro diretor do Conservatório. Acho que esse discurso deve ser compartilhado, por isso estou digitando aqui. Ele é longo, muitas páginas, convenhamos que deve ter sido cansativo de ouvir, mas tem trechos bonitos e deve ser lembrado!

Ah, sim, a inauguração aconteceu no dia 13 de agosto de 1848.

“Senhores. Solene é o objeto que hoje nos reúne. O dia da inauguração do primeiro Conservatório de Música, instituído no Brasil, não podia passar despercebido entre nós. Não era possível que os membros da Sociedade de Música da Cidade do Rio de Janeiro e os demais artistas nela residentes deixassem de concorrer quase espontaneamente para solenizar a instalação de um estabelecimento de tanta magnitude e que tão útil se deve tornar ao País. A criação de um Conservatório de Música na capital do Império, senhores, era uma necessidade há muito reclamada pelo progresso da nossa civilização. Foi como uma missão que os nossos antepassados nos quiseram legar a glória de desempenhar; é um dever sagrado que temos de cumprir e um serviço que a posteridade nos deve levar em conta.

A música, senhores, não é um invento do homem, antes resulta da organização que lhe outorgou a natureza. Sua origem, portanto, tem como que um tipo divino, verdade essa que o paganismo quis sem dúvida tornar saliente quando deu por inventores da música os seus deuses e semideuses. É pois, sua cultura tão necessária como a linguagem pela analogia natural que une uma a outra por princípios invariáveis que essencialmente as constituem, pois que ambas se servem dos mesmos meios para chegarem ao mesmo fim.

A declamação, bem como o canto, tem suas intorções e transições; e assim como a linguagem, elevando e abaixando os sons reproduz a expressão do sentimento e reveste-se do caráter das diversas afecções que experimentamos, do mesmo modo existe entre o coração e a voz uma correspondência íntima e secreta, que independendo da reflexão e da vontade, transmite as emoções do coração e influi poderosamente na sua apreciação.

Tão reconhecida era pelos antigos essa analogia da linguagem com o canto, que se estudava a gramática simultaneamente com a música, porque esta servia para exprimir os verdadeiros acentos da língua. Os gregos e os romanos, diz Condillac no “Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos”, notaram a sua declamação e acompanhavam-na com um instrumento.

A música não é, pois, uma arte frívola, mas considerada sob o seu verdadeiro ponto de vista é uma ciência de suma importância, que, por modo mais sensível que qualquer outra, une o útil ao agradável, e bem dirigida muito pode influir na moral e nos costumes.

Nenhuma arte, com efeito, desperta mais profundas emoções. A Bíblia rendeu homenagem ao seu poderio qualificando os cantores de profetas, e a antiguidade fabulosa proclamado que os acentos da harmonia domesticam feras e edificam cidades.

Orfeu, no Monte da Trácia, submeteu os monstros ao poder e sua lira; Aríon, salvando-se do naufrágio, Anfião, construindo cidades, todas essas fábulas da antiguidade, embelezadas pela imaginação dos poetas, não são aos olhos do filósofo senão brilhantes alegorias que simbolizam energicamente o império real da música.

Se o canto pois, é atributo dos povos ainda mais selvagens, com mais forte razão o é dos povos civilizados. A música, com efeito, é a insuperável companheira da civilização; com ela progride e se desenvolve, recebendo e comunicando alternadamente, o seu caráter e influência. É sobretudo entre as nações antigas mais célebres, entre esses gregos tão admiravelmente organizados, que cumpre estudar seus efeitos e importância.

Entre eles, imenso era o império da música, estendendo-se não só à ciência dos sons mas ainda à poesia, à eloquência, à declamação e à própria ginástica. Os filósofos a consideravam como elemento necessário à educação, desde a infância até os 20 anos. Os legisladores admitem-na nos templos para entoarem cânticos aos seus deuses e inspirarem a piedade; nas festas públicas para lhes imprimir um caráter moral; e nos combates para despertar os brios dos combatentes.

Os preceitos de moral que ensinavam a mocidade eram sempre acompanhados da dúplice melodia da poesia e da música; e Péricles instituiu em Atenas um certame músico que sempre tinha por assunto a glória dos libertadores da Pátria. E a par desses famosos exemplos extraídos das nações que outrora cultivaram a arte e que serão um eterno exemplo em todas as coisas da arte, gosto e educação, quantos não poderíamos citas ainda de outros povos e de outros tempos? Não são salientes testemunhas em favor da música dos Salmos da Bíblia, os Cântigos dos Mártires, os Hinos das Igrejas, os coros harmônicos dos Bardos e o impulso dos Missionários no cumprimento da sua missão civilizadora?

Entremos em nós mesmos. Não é nossa alma, qual instrumento dócil às impressões da harmonia, de quem ela faz vibrar cada corda ao seu capricho? Por que prodígio secreto, do Criador do Universo, consegue ela acalentar a dor, prestar melancólico lenitivo à tristeza, despertar coragem, dilatar as nossas faculdades, despertar enfim a humanidade de todos os vínculos terrestres e transportá-la às mais sublimes regiões?

Nunca existiu nação que não prezasse esta arte encantadora. A música é em toda parte um instinto da natureza, uma necessidade da alma; encontra-se nos campos e nos bosques, nos palácios dos déspotas do Oriente e nos pascigos (pastagens) da Suíça e da Sicília.

Por todas essas considerações de palpitante interesse e por ser a cultura da música útil, moral e necessária, é que as nações mais ilustradas do século em que vivemos se têm esmerado em estabelecer Conservatórios tendentes a propagar e conservar a Arte em toda a sua pureza, cônscia de que as belas-artes são essencialmente morais porque tornam o indivíduo que as cultiva mais feliz e melhor cidadão.

No Brasil, entretanto, a música tem sido como que uma planta exótica e sua vegetação unicamente devida à natureza dos brasileiros. Temos tido como por encanto um grande número de artistas notáveis em todos os ramos da arte, e se procurarmos indagar por quem foram iniciados nos preceitos e sublimes segredos dela, só teremos em resposta o impulso vivificador do gênio.

Se essa natural tendência houvesse sido cultivada, se recebesse uma educação uniforme e profissional, qual a dos Conservatórios, a que ponto teria ela remontado? Onde se remontou o padre José Maurício Garcia, de quem aqui vedes o busto, esse homem excepcional que, pela força do seu gênio, chegou a ombrear-se com as maiores notabilidades da Europa?

Era na verdade, para lastimar, senhores que tendo as demais artes e ciências já seu culto no Brasil, que se havendo instituido Academias Médicas e Jurídicas, Escolas Militares, um Liceu de Pintura, Escultura e Arquitetura, e outros muitos estabelecimentos de instrução e literatura, só a música estivesse posta em ouvido e a bem dizer desnaturada!

Este estado de abandono, ao passo que aniquilava os homens da Arte, descoroçoava os que a ela desejavam dedicar-se. Por uma inspiração quase divina, por um impulso que se não pode explicar, os artistas despertaram da inércia em que jaziam e resolveram envidar esforços e sacrifícios, a fim de reassumirem a posição que lhes era devida entre as demais artes e ciências.

Esta nobre resolução deu em resultado a fundação da Socidade de Música, que tantos benefícios lhes tem prodigalizado e que mui relevantes serviços ainda pode prestar ao País. Dois foram os fins que presidiram à organização desta Sociedade; a de realizar uma beneficência recíproca entre os associados, extensiva as suas famílias, e o de promover a cultura e o desenvolvimento da arte. Para conseguir-se porém, o segundo fim, era preciso cuidar com preferência do primeiro; era mister estabelecer um fundo que assegurasse um futuro menos contingente do que aquele que aguarda, de ordinário, os artistas quando impossibilitados, e assim os animasse à espontânea e fervorosa profissão da arte. Esta necessidade foi satisfeita e o primeiro fim da Sociedade acha-se felizmente preenchido. Louvor aos artistas que souberam centralizar-se e revestir-se de coragem para, afrontando todas as dificuldades, consolidarem tão benéfica instituição!

A Sociedade de Música do Rio de Janeiro possui hoje um fundo que cada dia mais se vai acumulando e que põe seus membros a coberto da indigência. Viúva, filhos, mães e irmãs encontram nesta Sociedade um seguro auxílio que minora suas privações.

Consolidado assim o fim primário da Sociedade, convergiram todos os seus cuidados para realizar o seu fim secundário, o da cultura e desenvolvimento da arte.

Não era possível, senhores, que uma associação somente mantida por tênues cotizações dos seus membros, e aliás sobrecarregada de sagrados e irremissíveis obrigações; pudesse dar o impulso conveniente a tão nobre anelo. A criação de um Conservatório de Música era único meio de desenvolver a propagação e pureza da arte mas como criá-lo? Como levá-lo a efeito? Onde os recursos para mantê-lo?

Semelhantes dificuldades desalentavam até mesmo aqueles que, possuídos dos melhores desejos, nunca desanimaram à vista dos obstáculos e sacrifícios que tiveram de vencer para a efetiva consolidação da Sociedade. Quase sem esperanças, compungidos por verem cada dia definharem os melhores artistas nacionais e, ao mesmo tempo, sem meio de poderem substitui-los, deliberaram fazer chegar ao seio da Representação Nacional a urgência da criação de um Conservatório de Música nesta capital, pedindo que, para esse fim, lhes fosse concedida uma coadjuvação por meio de loterias.

Sua pretensão foi favoravelmente acolhida. A Terceira Comissão de Fazenda achou sua súplica tão digna de benigno deferimento que disse, em seu parecer, que escusava fundamentá-la e julgava mesmo ocioso demonstrá-la bastando notar-se que, ao passo que outras nações faziam esforços para animar a música, o Brasil se tinha conservado em inação, deixando os homens da Arte entregues a seus próprios recursos.

Esta foi a linguagem da Comissão. O Corpo Legislativo, anuindo a esse parecer, conceceu à Sociedade 16 loterias extraíveis em oito anos, para a criação e manutenção do estabelecimento.

Honra aos legisladores, que se compenetraram da vantagem de proprocionar ao País mais um meio civilizador, tendente a fazer desenvolver os talentos dos brasileiros! Honra aos legisladores que, apreciando a pureza de nossas intenções, não nos supuseram vis especuladores e acederam à nossa patriótica súplica! Esta prova de confiança, que merecemos do Corpo Legislativo e depois do Governo, é o nosso maior padrão de glória.

Concedido o subsídio das loterias, ainda muito tínhamos que vencer para efetuar o nosso intento. As bases reguladoras do estabelecimento, o edifício para encetar os seus trabalhos, a extração da primeira loteria, foram novos impecílios que se opuseram ao complemento da nossa obra e deram lugar a uma dilação de tempo que talvez nos tenha sido injustamente sensurada.

Felizmente, senhores, a favorável intervenção e os bons ofícios de um brasileiro amante do progresso do País e que hoje nos honra com a sua presença, muito contribuiu para se superarem estes novos obstáculos. As bases foram decretadas e bem se depreende de suas disposições quanto o Governo Imperial anela a consolidação deste Conservatório.

Sirva, em abono de mnhas palavras, o ligeiro esboço que passo a fazer das principais determinações dessas bases.

O Conservatório será dirigido por uma comissão nomeada pelo Governo, composta de um diretor, de um tesoureiro, e de um secretário, tirados dentre os membros da Sociedade de Música, que reúnam habilitações necessárias para o exercício de tais lugares e imediatamente subordinados ao Exmo. Sr. Ministro do Império. Os professores também serão nomeados pelo Governo sob proposta da Sociedade ou da Congregação do Conservatório, quando já esteja em efetividade o concurso determinado nas mesmas bases. À proporção que se for extraindo cada uma das loterias, se irá empregando o seu produto em apólices da dívida pública e, com os juros destas se acorrerá às despesas do estabelecimento, devendo a primeira cadeira ser instalada logo depois que tiver corrido a primeira loteria e as outras, à proporção das que se forem extraindo. Felizmente, e criadas todas as cadeiras necessárias, as sobras dos rendimentos serão aplicadas à compra ou edificação de um prédio apropriado ao estabelecimento e, enquanto isto não se verificar, o Governo destinará um edifício, onde se dê começo aos trabalhos do Conservatório.

Este resumido esboço que vos apresento das disposições mais salientes das bases, dispensa-me de anotar com mais minuciosidade a sabedoria que presidiu à sua confecção, e a estabilidade que elas garantem a esta instituição, bastando dizer que o Conservatório, criado pela Sociedade de Música, acha-se nacionalizado pelos poderes supremos do Estado.

O Governo houve por bem nomear interinamente a comissão diretora; e se essa nomeação não recaiu nos professores mais aptos da Sociedade, quanto ao merecimento artístico recaiu ao menos nos que se acham possuídos dos melhores desejos pelo progresso e engrandecimento da arte.

A primeira loteria já foi extraída e o seu produto, salvo o necessário para despesas com utensílios, foi imediatamente empregado em fundos públicos.

Só nos restava a aquisição da casa para dar começo aos trabalhos. O Governo, de acordo com o Sr. Diretor do Museu e com o Conselho da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, concedeu-nos parte do edifício em que nos achamos e me mui agradável, em tão solene ocasião, render um devido testemunho de gratidão, confessando que temos sido acolhidos por estes dignos senhores com as maiores atenções e lhes somos devedores em grande parte do prazer de ver efeturado o que tanto ambicionávamos.

A nomeação do lente de rudimentos e solfejos, por onde devem começar os trabalhos do Conservatório, recaiu no Sr. Francisco da Luz Pinto, de quem esperamos não desmentirá o conceito que mereceu dos seus consócios e do Governo.

Alcançada está pois, senhores, a meta dos nossos desejos e lançados os fundamentos do Conservatório de Música que hoje inauguramos: tardia foi talvez essa inauguração, porém quando nos lembramos que o primeiro Conservatório europeu só pode ser criado em Nápoles em 1537 à custa de esmolas mendigadas; de Páis em País, e de porta em porta; e o da França só em 1791, à custa de consideráveis auxílios do Governo e por acurados esforços do ilustre Sarrette, não nos podemos deixar de encher de um nobre orgulho pelo acolhimento e favorável concurso em que achamos nos poderes do Estado, nem podemos deixar de render graças à Providência por vivermos nesta época de progresso, em que nos basta aclimatar o que custou séculos de obstinadas tentativas etc.”

discurso de Francisco Manuel da Silva, transcrito do livro “Do Conservatório à escola de música”, ensaio de Baptista Siqueira.

Ufa! É isso aí. Na verdade a criação e o início do Conservatório não foi assim tão tranquilo, teve muito perrengue, mas isso é assunto para outro post…

A propósito, para quem se interessar pelo que ele fala sobre a filosofia dos gregos, música e ginástica na formação do homem etc, escrevi um trabalho sobre isso também.

Até a próxima!


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