Sobre aquelas crianças cantoras de ópera: o negócio é o seguinte

Olá! Mês passado vi um post em um blog, falando sobre crianças que cantam ópera e crianças que são pequenos prodígios em outros instrumentos e achei excelente. Depois de devidamente pedir autorização para o autor do post (thank you, Dr. Winters!), estou traduzindo o texto dele.

O autor é o Dr. Glenn Winters, doutor em música pela Northwestern University, professor, pianista e cantor de ópera. Ele escreve o blog Operation Opera. Você pode ler o post original, em inglês, clicando aqui.


“Acredito em começar com eles jovens”

Sobre aquelas crianças cantoras de ópera: o negócio é o seguinte

Eu vou contar um pequeno segredo a todos vocês amantes de músicas: nós músicos profissionais não temos muito uso para o fenômeno das Crianças Prodígio. Violinistas de seis anos tocando Mendelssohn; pianistas de dez anos tocando Rachmaninov; e especialmente *treme* meninas de doze anos se esgoelando ao cantar árias de ópera… ou música country… ou o que quer seja… em rede nacional? Sim, é impressionante. De certa forma. Você pode ficar com eles; eu não tenho interesse, especialmente no que diz respeito a cantores em miniatura.

Você conhece aquele programa da NPR “From The Top”, com a participação de intérpretes adolescentes ou pré-adolescentes nos maravilhando com sua “maturidade” e precocidade?

Eu não sou um fã desse programa.

Se você é, ótimo pra você. Aproveite. Mas muitos profissionais no mundo da música erudita veem com maus olhos os pequenos virtuosos. Tantos motivos…

Pra começar, a grande maioria das crianças intérpretes vai eventualmente se quebrar e se queimar tentando fazer a transição de intuitivo para adulto analítico. Havia uma centopeia que uma vez foi indagada, “Quando você anda, em que ordem você move suas muitas pernas?” A pobre infeliz nunca tinha pensado sobre isso, e se tornou tão auto-consciente que nunca mais andou. Essa síndrome é o padrão para criancinhas talentosas. Pianistas crianças memorizam intuitivamente, de ouvido; profissionais adultos memorizam na estrutura de um sistema analítico. Crianças que começaram a aprender obras-primas complicadas sem realmente saber como estavam fazendo isso podem cair num estado de paralisia similar.

Além disso, essa “maturidade musical incomum” que você pensa que detecta na oh-tão-requintada frase de um Noturno de Chopin ou de um Estudo de Paganini não é maturidade orgânica afinal. É macaquice; é mímica; é o resultado de cuidadosamente imitar a interpretação de algum adulto, seja do professor ou de alguma gravação. Composições musicais que expressam percepções profundas sobre amor, perda e vida estão além do conhecimento de alguém com nove anos e é assim que as coisas são. Ter um bom ouvido não é a mesma coisa que ter percepção musical.

Outro problema relacionado a sair do estágio de prodígio: crianças estrelas se acostumam a ser o intérprete mais bem sucedido onde quer que estejam. Elas ganham competições; elas recebem a adulação; elas são Número Um, baby! Elas conseguem tocar peças difíceis oitenta porcento perfeitas com pouco esforço. Isso por si só já é um problema: quando tais jovens músicos vão para se formar em seu instrumento no nível de universidade ou conservatório, eles estão muitas vezes satisfeitos demais para continuar conseguindo 80% de perfeição com 40% de esforço. Não é incomum que eles descubram, para seu atordoamento, que eles são superados por estudantes menos dotados que conseguem 95% de perfeição com 110% de esforço. É a velha história Lebre-vs-Tartaruga aplicada ao piano. Alguns de vocês devem se lembrar de uma criança prodígio de uns vinte anos atrás, um pianista grego chamado Dmitri Sgouros. Ele foi sensação se apresentando no “Tonight Show” e tocando o Terceiro Concerto pra Piano de Rachmaninov com dez ou onze anos. Minha esposa conhecia um dos seus professores na América e ouviu o seguinte caso: com onze anos, Sgouros tocou a Sonata pra piano em Fa menor de Brahms, uma besta de cinco movimentos, à primeira vista. Ele então tocou uma segunda vez e declarou que tinha e peça memorizada e pronta para apresentar. Wow! Gee! Gasp! Como, ele é outro Franz Liszt!

Agora é 2012 e Dmitri Sgouros é um músico em seus trinta anos. Ele é o melhor pianista vivo? Ele se apresenta para casas lotadas em New York, Chicago e L.A.? Ele vai entrar pra história? E sua performance da Sonata em Fa menor de Brahms foi uma performance para ser lembrada por gerações?

Não, não, não e não. Ele tem um website; toca na Grécia e por aí vai — isso é legal, suponho. Veja, a realidade é que para cada Yehud Menuhin (prodígio que se tornou um grande músico), existem cem Dmitri Sgouros, cujas chamas diminuem com a idade. (Eu sei que essa estatística é precisa porque eu acabei de inventa-la.)

Mas por mais desdém e “rolar de olho” com cansaço que eu sinta por prodígios instrumentais (e eu ensinei alguns na minha carreira de professor), não é nada comparado ao desprezo que sinto por Crianças que Cantam Ópera.

Como Joan Rivers diria, podemos conversar? Vamos esclarecer uma coisa: ópera é para o canto o que neurocirurgia é para a medicina. Nenhuma criança pré-adolescente jamais deveria fazer isso, e só alguns adolescentes poderiam fazer um pouco. Sim, sim, eu sei tudo sobre Roberta Peters ter feito sua estreia na Metropolitan Opera com dezesseis anos. Grande brado, não me importo. Até que seus hormônios tenham terminado de permear, crianças deveriam cantar (duh) músicas escritas para crianças: num coral para crianças, na escola, na igreja, diabos – até numa ópera, desde que seja um papel escrito para uma criança, com as limitações de uma criança em mente.

Deixe-me explicar. A melhor metáfora para permitir que crianças cantem a literatura operática para adultos é encontrada na Pequena Liga de baseball. Um treinador responsável da Pequena Liga assegura que um arremessador de dez anos vai jogar a bola com leveza, num arremesso flexível e sem estresse. Alguns espécimes na comunidade dos treinadores, entretanto, não consegue resistir à compulsão de ensinar as crianças a fazer arremessos complicados: bolas curvas, “sliders”, “screwballs” e por aí vai.

O problema, claro, é que esses arremessos causam um grande grau de estresse nos ossos, músculos e tendões. Porém, o sistema músculo-esquelético de um jogador de baseball no ginásio ainda é um trabalho em andamento e, assim, incapaz de toletar tamanho estresse sem induzir, na melhor hipótese, inflamação e sérias lesões na pior.

É exatamente o mesmo cenário com crianças cantando ópera. O fato é que muitos estudantes em voz com nível universitário são mantidos longe da música de Puccini, Verdi e outros compositores até que eles de fato entrem na graduação.

Mas aqui está a pior coisa, a coisa que realmente me deixa MALUCO: quando eu tento explicar isso para não-músicos, NINGUÉM ACREDITA EM MIM! ARRRRGGGGHHHH!! Aqui estão as respostas comuns que eu espero ouvir:

“Mesmo? Bom, soou legal pra mim…”

“Oh, e você tem um doutorado. Você apenas não está acostumado a trabalhar com crianças menores, eu imagino.”

“Bom, não vi nenhum problema; ele/ela certamente parece gostar disso.”

“Qual o problema, Glenn – sentindo um pouco de ciúmes?” (Oh, sim, como você é perspicaz: estou me roendo de inveja porque nunca aparecerei no “America’s Got Talent”. *bufa*)

“Bom, eu conheço o professor, e dizem que o professor é mesmo bom. Tenho certeza de que está tudo bem neste caso.”

NÃO! Não está, não! Nem mesmo para uma menina de onze anos cantando a Valsa de Musetta ou “O mio babbino caro”! Não está bem, não está bem! Ou o professor está delirando ou é uma fraude! Parem de cantar ópera! Parem de cantar ópera! As cordas vocais que produzem tons musicais são um órgão altamente delicado, extremamente frágil e facilmente danificado. Cantores de ópera adultos correm o risco de ter uma lesão por excesso de uso; qual a chance você acha que Shirley Temple Junior tem? Pense a respeito. Aquela menininha cantando ópera está passando cheques que seu corpo não pode sacar, mesmo que, sim, possa soar perfeitamente amável para SEUS ouvidos amadores. Você não vai ouvi-la depois de dez anos, quando seu instrumento estiver danificado ao ponto em que uma carreira no campo da ópera já não é mais uma opção.

E minhas objeções não estão limitadas aos perigos vocais. Colocar uma criança na televisão para cantar, seja numa audiência local, regional ou nacional, não é jeito de criar uma criança. É até pior quando o programa é no formato de uma competição. Você entende que uma criança com uma voz madura incomum ainda tem a maturidade emocional de uma criança, não entende? Um jovem que sempre foi elogiado por sua bela voz está nadando entre tubarões assim que uma carreira no Show Business começa. Independente de quanto cachê é recebido, independente das cartas de fãs recebidas ou do orgulho sentido pelos pais, aqui está o que a criança encara:

  • Dolorosa, maliciosa crítica feita pelos Simon Cowells do mundo.
  • Perda; perder competições, perder contratos de gravação se as vendas não estiverem altas; e rejeição pública para todos verem, talvez com câmeras treinadas em seus rostos quando o nome de outra pessoa for anunciado como vencedor, seguindo a trilha de lágrimas escorrendo por suas bochechas. Perder uma eleição para representante de turma é uma experiência valiosa; perder um maldito concurso de canto numa TV em uma idade jovem é traumático.
  • Ser considerado uma aberração pelas outras crianças da sua própria idade.
  • A pressão de fazer o que estão fazendo de modo que não desapontem os adultos em suas vidas: pais ambiciosos, o professor que pode estar obcecado pela trilha de sucesso do estudante; adultos com quem eles passam a maior parte do tempo interagindo ao invés de colegas com mesma idade.

Eu sei que existem muitos professores particulares de canto altamente educados e bem intencionados, que se “especializam” no treinamento vocal de crianças e provavelmente recebem um número de brilhantes apoios e recomendações. Aqui está minha recomendação: se sua filha de dez anos tem uma boa voz, faça um favor a ela e deixe-a ter lições de piano ou violão. Então ela terá uma formação musical sólida e habilidades musicais que irão dar resultado quando ela atingir a idade que a Mãe Natureza designou para um sério estudo vocal começar. Se aquele altamente educado professor der a ela músicas simples para cantar com um alcance modesto, pedindo a ela para se apresentar apenas em recitais de estúdio, você pode passar por isso sem causar dano permanente.

Quero dizer, qual a sua pressa, de qualquer forma? Crianças cantam na igreja, em casa e na escola. Deixe o palco e os estúdios de gravação para os grandes e maus adultos. Obrigado.

Dr. Glenn Winters

Meu comentário

Como já disse, achei um texto excelente. Já tinha conversado com meu professor a respeito de crianças prodígio – ele odeia dar aula pra esse tipo, por serem muito mimadas e quererem fazer tudo do jeito delas. É o que acontece quando uma criança cresce sendo elogiada demais e super-adulada. Isso não é saudável pra personalidade da criança.

As crianças que cantam ópera são um caso à parte. Primeiro porque o instrumento está no próprio corpo, que ainda está em crescimento. As chances de causar danos às cordas vocais quando se canta inadequadamente já são altas em um adulto, imagine em uma criança. Sem falar que, nos dias de hoje, uma criança cantando chama muito mais a atenção do “povão” do que uma tocando um instrumento; por isso elas são mais exploradas pelos programas de TV.

Sim, um menininho tocando piano maravilhosamente ou uma menininha cantando “o mio babbino caro” em uma competição podem ser encantadores, mas isso é prejudicial. Crianças devem ser crianças. Devem tocar e cantar se quiserem, mas sem encarar tanta pressão.

PS.: Esse post teve tamanha repercussão nos comentários (até o presente momento, 351) que gerou um post sobre os comentários.

Alguém salve esta menina, por favor.


http://youtu.be/xPITHzdUUDk


http://youtu.be/VnQ-e1wU0wQ


4 Responses to Sobre aquelas crianças cantoras de ópera: o negócio é o seguinte

  1. Pra mim crianças devem ser crianças. Jogar, ver desenho animado, quebrar coisas, se machucar… Qualquer tentativa de fazê-las pequenos adultos eu vejo com desprezo. Tenho muita dó de meninos e meninas que os pais matriculam em dezenas de cursos, tem agendas lotadas e quase nenhum tempo pra ficar a toa. Com prodígios deve ser ainda pior.

  2. Muito obrigado para fazer circular o meu ensaio! Eu acho que eu pareço muito mais suave e sofisticado em Português, ha ha ha. Eu compartilhei essa tradução na minha página do Facebook para os meus amigos para desfrutar. E eu tenho um amigo músico que é um nativo de Portugal; ela vai especialmente divirta-se!

    Com os melhores cumprimentos,
    Glenn Winters

  3. Exatamente! Acho que os pais têm que incentivar as crianças a fazer alguma atividade extra-curricular pra elas descobrirem suas aptidões (bem que eu queria ter começado a estudar música quando era criança…), mas sem ficar exigindo demais. A pressão em cima de um prodígio é cruel, a criança fica com medo de decepcionar os pais =\